Nesta época do ano, em que muitas Voltas se dão, muitas competições se organizam e o ciclismo continua a ser uma modalidade popular, recordamos Ottavio Bottecchia com este belo texto de Marcos Pereda.
A senhora Bottecchia dá à luz pela oitava vez. Imaginamo-la cansada, certamente envelhecida de forma prematura. Oito filhos são muitos, embora na última década do século XIX essa quantidade não fosse rara. Mas é fácil dizer isto estando de fora, claro. O seu oitavo filho. Está esgotada, não quer pensar: põe Ottavio, de nome. E ficou Ottavio Bottecchia.
A fome ficou marcada no rosto do menino. As maçãs do rosto afundadas, a pele pálida, a testa clara, com rugas que o sol põe, quando estás exposto o dia inteiro. E o nariz, o nariz geométrico, o apêndice que te intimida, te observa, te estuda. O nariz lendário de Bottecchia do qual até Dino Buzzati acabará por falar. Nada menos.
Estamos no começo do século XX e os Bottecchia têm que se mudar. Abandonam a pequena povoação de Friul, muito perto de Treviso, e viajam para a Alemanha, terra prometida, à procura de um pedaço de pão para dar às suas crianças. Ali, em terras alemãs, Ottavio começa a trabalhar. De pedreiro. Trabalho duro, descarnado, ingrato. Os seus músculos endurecem, o seu caráter torna-se taciturno, concentrado. É um rapaz. É um operário. Em seguida, muito pouco depois, será um soldado.
Começa a Primera Guerra Mundial e Ottavio, que tinha voltado com a sua famíia para Itália, é chamado para as fileiras. O mesmo país que fez emigrar a sua família pela falta de oportunidades reclama agora o seu sangue para se defender da terra que os acolheu e alimentou durante anos. Ottavio vai, claro, para o Exército Real Italiano e alí é rapidamente incorporado na divisão dos Bersaglieri.
A dos ciclistas-soldados que acabam por se converter em lenda nas suas máquinas “Bianchi”, as mesmas que têm no guiador uma peça semelhante às usadas agora nas provas de contrarrelógio e que, naquela altura, servia para apoiar a espingarda. Aos Bersaglieri queria pertencer, mais do que nenhuma outra coisa na vida, o personagem pintoresco e trágico, Enrico Toti. Mas essa foi, seguramente, outra história…
O caso é que, inclusivamente entre todos aqueles ciclistas-soldados, se destaca Ottavio Bottecchia pela sua força, pela velocidade que era capaz de alcançar em longuíssimas distâncias pedalando sem mostrar fadiga. E, por isso, o seu destino não é outro senão o de transportar mensagens entre as línhas de defesas italianas. Por outras palavras, um dos exercicios mais arriscados que se possa imaginar.
Pelo menos, em duas ocasiões, Ottavio entra em batalha e ao que parece mostra-se confiante e tranquilo, fazendo gala de enorme sangue frio e pontaria certeira. Sai dessas emboscadas ileso e com uma medalha de prata do Ejército Italiano, pelo seu valor. Mas continua na guerra. Antes do final da Guerra terá sofrido um ataque com gás mostarda e sofreu de malária. Ah! E as suas pernas estão mais fortes que nunca, tanto que, assinado o Tratado de Versalhes, Bottecchia toma uma decisão: ser ciclista profissional.
Não será fácil. Viajará até França para trabalhar, de novo, como pedreiro, e competir nalgumas pequenas corridas. Ali, entre os seus companheiros de trabalho, vão sendo forjados sentimentos políticos no jovem Ottavio. Porque Bottecchia era socialista. Tinha aprendido a ler graças aos panfletos socialistas que os seus colegas lhe deixavam – naquela união tão curiosa entre o desporto e a política da qual falará mais tarde Gramsci, em sentido contrário, quando conta que na prisão os presos políticos do fascismo mantinham o contacto com o exterior graças à leitura da “Gazzetta dello Sport” e as glórias dos ciclistas italianos – e o seu sentimento proletário encarna-se profundamente. Não será, claro, a última vez que falamos das ideias de Ottavio…
Na bicicleta, o jovem Bottecchia demonstra rapidamente as suas qualidades: tenacidade, fortaleza, capacidade extrema de sofrimento. E uma qualidade de escalador como, dizem, nunca dantes vista. O treino na Frente Italiana parece ter dado os seus frutos. A sua estrela cada vez brilha mais e a ninguém surpreende que seja selecionado pela equipa Automoto-Hutchinson, uma das mais potentes da época, para correr na Volta à França de 1923.
Aquela corrida é completamente dominada pelo principiante e só a sua disciplina o afasta da vitória, que vai parar ao chefe de equipa, Henri Pelissier. Quando o francés ordena a Bottecchia que o espere em qualquer etapa, o italiano obedece sem problemas, parando e deixando passar minutos enquanto limpa com esmero a bicicleta, tirando a lama, engraixando os travões… Todos estão conscientes que foi o melhor, mas termina em segundo lugar, em París. No ano seguinte fará ainda melhor.
Henry e Charles Pelissier mantêm, desde há tempos, um conflito azedo com Desgrange, o criador e diretor da Volta, que não gosta de modos toscos, dos costumes escandalosos dos irmãos. A situação torna-se irremediável quando Desgrange descobre Henri a atirar uma camisola de lã ao chão, algo completamente proibido. Desqualificação, discussão, insultos… Os Pelissier ficam fora da Volta e nesse mesmo día concederam uma entrevista a Albert Londrés cujo título é já símbolo do ciclismo: “Os Forçados da Rota”…
A consequência desportiva deste facto é que Bottecchia tem caminho livre para se impor na carreira e fá-lo-á com uma superioridade abismal sobre os outros, deixando algumas histórias que se recordam sempre, como quando na etapa “Casse Desserte” sai da bicicleta para percorrer os últimos metros a pé, cantando a plenos pulmões canções militares transalpinas. Dias depois será o primeiro italiano a impor-se, em París. Glória para a nova estrela.
Menos no seu país de origem, claro, onde as suas ideias de esquerda casam pouco com as novas políticas que o Duce está a impor. Que falem, que falem de Bottecchia, mas só como desportista. Nada de dar voz às suas pretensiões políticas. Nada de o converter em líder, em símbolo, para certos grupos. Nada disso. Um ciclista e só um ciclista. E veremos o que fazer com ele…
No ano seguinte, Bottecchia ganha a segunda Volta à França vestindo a camisola amarela, desde o primeiro dia. É, dizem, o mais sólido ciclista que existiu. Em 1926, vê-se condenado a abandonar metade da etapa “Bayona-Luchon”, que percorre a tetralogía pireneica, a do Círculo da Morte, sob um nevão asgardiano que passou para a história como a jornada mais dura de sempre da Volta. Um dia de tantos retalhos, de tantas peças, de tantos homens duros que nem penedos a chorar desconsolados nas bermas… Picado pelo seu amor própio, incapaz de dar uma só pedalada mais, Bottecchia promete voltar no ano seguinte para se vingar e vencer pela terceira vez, em Paris. Nunca o poderá tentar tentar.
“Meu maior temor é que as minhas ideias tragam alguma desgraça à minha família”, disse uma vez Ottavio. Em maio de 1927, os seus piores presságios parecem tornar-se reais quando o seu irmão Giovanni, também ciclista, é empurrado por um carro que se põe em fuga, enquanto treina. Giovanni cai no chão, magoado. Ottavia cala e continua a preparar-se. Planeia mudar-se para França por causa da Volta. Volta que nunca chegará a correr.
São nove da manhã de três de junho de 1927, e um agricultor caminha hesitante. Viu algo estranho apoiado no muro das suas terras. Um fardo, um corpo humano. É um ciclista. As feridas são tremendas e quase não lhe permitem reconhecer Ottavio Bottecchia, o grande Ottavio. Levam-no para o hospital de Gemona, mas não há nada a fazer. Falece uns días depois.
Abre-se uma investigação. O que se passou com o ídolo? A conclusão é vaga: uma queda provocou os golpes e, por extensão, a sua morte. Mas não escapa a ninguém que essa explicação é insustentável: a bicicleta estava a vários metros de Bottecchia e apresentava apenas pequenos estragos. Não, não foi um acidente. Todos murmuram. Foram eles, os fascistas. Foram eles que o seguiram, lhe deram uma tareia, o deixaram moribundo. Eles. A ele. Ao vermelho. Tudo é silêncio naqueles gritos desgarrados. Itália gemerá sem que ninguém a escute durante décadas.
Muitos anos depois, um sacerdote recebe a última confissão de um agricultor moribundo. Foi ele, diz, que matou o ciclista há tanto tempo. Foi ele, que o fez porque lhe estava a roubar umas uvas das suas terras. Apanhou uma pedra e golpeou-o. Não queria fazê-lo, foi un acidente. Fui eu. E expira. E o sacerdote conta à imprensa. Caso encerrado, o de Botecchia. Foi um cúmulo de desgraças.
Sem política, sem vinganças. Só que… só que em junho não há uvas para roubar e não te matam por causa delas. E o sacerdote em questão tinha sido um fervoroso fascista durante o Regime. E que, em definitivo, nada estava explicado sobre tudo o que se podia explicar. Porque, ainda hoje, não sabemos como morreu o homem que, quase certamente, mataram por causa das suas ideas. Fica a sua recordação, os seus gestos. Fica, também, o seu mistério.
* Marcos Pereda é um escritor, jornalista e professor universitário.
Tradução: António José André
Nota: Ottavio Bottecchia nasceu no dia 1 de agosto de 1894.
Artigo publicado em http://ctxt.es/es/20160127/Deportes/3894/Ottavio-Bottecchia-ciclismo-Italia-I-Guerra-Mundial-bersaglieri-Tour-de-Francia-fascismo-Mussolini.htm